She Who Dwells
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The laws of chance, strange as it seems,
Take us exactly where we most likely need to be
[David Byrne]
Este fim-de-semana fui a uma das novas catedrais do consumo da grande Lisboa: o Ikea. Precisava de comprar umas cadeiras e arrisquei. Chegada a Alfragide dei de caras com uma estrutura gigante de dois pisos cheios de móveis, não sei quantos lugares de estacionamento, playground para as criancinhas, comes e bebes e ainda um espaço com produtos alimentares oriundos da Suécia. Parecia uma saloia, comentei vinte vezes que isto ou aquilo era baratíssimo, giríssimo e, claro, trouxe mais não sei quanta tralha para além daquilo que precisava. Quando voltei a recuperar os sentidos, cheguei à conclusão que o ataque de provincianismo agudo que tinha acabado de sofrer era a prova irrefutável que o meu regresso a Portugal aconteceu há demasiados anos.
E já que falei do «Dancer in the Dark» aproveito para referir o meu filme preferido. É difícil escolher só um filme preferido e, feita a escolha (com todas as ressalvas: “um dos”, “até agora”, etc.), é ainda mais difícil falar dele. Por isso vou só falar de uma coisa: os diálogos da Bess com o seu deus, em que ela fala consigo própria. De um lado uma voz autoritária, um olhar virado para baixo; um tom repreensivo e condenatório. Do outro, uma voz infantil, um olhar expectante, virado para cima (como na foto); um tom choroso, suplicante mas subserviente. Já tive muitos diálogos destes, mas tanto o meu deus como eu fomos, ao longo do tempo, mudando de voz, de tom e de posição relativa.
Quando era pequena passava muito tempo a matutar nesta constatação do Calvin e tomei medidas. Eu não ia ser assim. Todos os dias reforçava a minha resolução, embora até me parecesse impossível vir alguma vez a esquecer-me do que era fixe. Mas por via das dúvidas e por ser constantemente confrontada com adultos que tinham sofrido dessa inexplicável amnésia, era quase diária a minha conversa comigo mesma: sim, continuo a saber o que é fixe; sim, continuo determinada a fazê-lo logo que possa. É por isso que hoje vivo numa roulotte com um pastor serra da estrela.
Vivemos entre o receio de desiludir as pessoas de quem gostamos e a necessidade de sermos nós próprios, com todas as nossas imperfeições. Quanto a mim: “It’s hard to find people who will love you no matter what. I was lucky enough to find three of them.”* Obrigada (do tamanho do mundo). (*Carrie Bradshaw, «Sex and the City»)
Normalmente, não queremos assumir que o fim é também uma fase. Tentamos reduzi-lo a uma zanga, a um fazer de malas, a um bater de porta. Mas um final sucede sempre a um meio e precede sempre um princípio. Se não o planearmos, dicutirmos e vivermos a dois porque dói, porque estamos cansados, tristes e desiludidos com o outro e connosco, corremos o sério risco de destruir o que passou e comprometer o que nos aguarda.
Por mais incrível que possa parecer, há outro alguém que eu adoro que faz anos neste mês. Parabéns! Quando o vir não lhe vou dar um beijo porque ele diz que não gosta de receber presentes.
A vontade de partilhar tudo contigo não nasceu com a chegada da Primavera. Este querer já viveu todas as estações do ano.
“When we get to the end of human beings we have to delude ourselves into a belief in God, like a gourmet who demands more complex sauces with his food.”* Não compreendo que se tenha fé em Deus e pouca ou nenhuma fé nos seres humanos. (*Graham Greene, «The End of the Affair»)
Desde que vi o “Texasville” desenvolvi um preconceito quanto a roupas com dizeres, palavras e marcas estampadas. Levei a cabo um raide surpresa ao meu guarda roupa de verão e apanhei: (i) uma t-shirt “Garfield” – veio da Holanda em 1988, foi oportunamente roubada à minha irmã e tem uma vista panorâmica fantástica do Garfield na praia com o Pooky e o Odie. Nos ombros, o céu azul e as nuvens brancas bem desenhadas; no abdómen, as montanhas ao fundo; do umbigo para baixo, a areia. Isto em 360º (frente e costas), excepto os personagens que só aparecem à frente. Assim se explica que eu ainda vista uma t-shirt com 16 anos, ostentando “Garfield” em letras gordas alaranjadas. (ii) uma i-shirt* onde se lê “myself” – foi comprada este ano e faz todo o sentido: 2004 é o ano do meu eu. (iii) um vestidito de praia onde se imprimiu “Maui Girl” – mas onde eu leio sempre, talvez por ser ao espelho ou por causa da dislexia, “Miau Girl”. “Miau” como expressão da minha individualidade; gosto.
Eu não tomo o pequeno almoço em casa e a minha pastelaria do costume fechou todo o mês de Agosto. Ser obrigada a frequentar o café do lado já me anda a transtornar. É que eles não vendem croissants folhados com muito queijo e manteiga e o galão escuro não tem o mesmo sabor.
Neste dia alguém que eu adoro faz anos. Neste dia nada mais importante no mundo acontece.
O amigo já partiu. Soube bem ouvir a sua voz uns minutos antes do embarque dele para o fim do mundo. Sempre julguei que a nossa amizade teria termo certo. A minha teoria era simples: eu tinha aparecido na vida dele para lhe dizer umas coisas e pronto. Bem, as coisas foram ditas, sem papas na língua, sem pensar duas vezes, a olhar com ansiedade para o relógio do tempo a ver se ainda dava para acrescentar mais um ponto de vista, um pensamento, um comentário, um silêncio. O termo certo aconteceu no sábado e quando o meu telefone tocou para ele se voltar a despedir eu percebi instantaneamente que a nossa ligação, afinal, não tinha fim à vista. Ainda bem.
A minha empregada apesar de estar de férias ofereceu-se para ficar um dia desta semana com o meu filho. Agradeci imenso o convite até porque já comecei a trabalhar e o infantário ainda não voltou a abrir as portas. Combinámos encontrarmo-nos hoje. Preocupada, resolvi perder uma manhã de afazeres profissionais e dar ao miúdo todo o tempo do mundo para se adaptar ao programa. É que ele já não via a senhora há quase um mês (unidade de tempo equivalente a uma eternidade para uma criança de dois anos) e nunca tinha ido a casa dela. Imaginei-o primeiro a sorrir quando a visse mas depois a chorar agarrado a mim quando percebesse que a ideia não era irmos brincar todos juntos. Prevendo este possível cenário, carreguei a mochila dele com os seus bonecos preferidos, livros, não sei quantos carrinhos e a imprescindível chucha para o que desse e viesse. E lá nos metemos no carro rumo ao Parque da Bela Vista. Eu já estava completamente mentalizada para o pior e até já tinha pensado em várias soluções alternativas. Chegámos. A senhora estava na rua à nossa espera aos pulos gritando o nome do meu filho e ele ao vê-la desenhou o tal sorriso. E depois? Depois, saltou voluntariamente para o colo dela e disse-me adeus com o ar mais seguro e bem disposto da vida. Não tive outro remédio senão enfiar os receios de mãe no saco e guiar descontraidamente até ao emprego.
É normal deixarmos de usar esta expressão quando acabamos o liceu ou, na melhor das hipóteses, a faculdade. A partir dos nossos famosos 18 anos pensamos que o termo não terá mais aplicação possível. As melhores amigas costumam ficar arquivadas com os nossos diários. Fechamos a porta do mundo cor-de-rosa para ir trabalhar e não acreditamos voltar um dia a tropeçar em verdadeiras amizades. Daquelas que nos fazem dar gargalhadas, pagar contas de telefone absurdas, conversar até altas horas da noite, sentir saudades, partilhar segredos, trocar presentes, conselhos e carinhos, vencer desafios. Esta é a regra. Eu tive a sorte de experimentar a excepção e de as (re)encontrar no espaço e no tempo menos provável.
O meu corpo mergulhado na água do mar vive uma sensação adicional de liberdade provocada pelo sal e pela infinitude.
Eu sabia Sam. Devia ter continuado a comer chocolate. As vantagens são inúmeras e o inconveniente é único: borbulhas na cara.
Sou fã e porquê? Tudo começou com o «Sound of Music» que vi no Londres. Não sei que idade tinha, mas o facto de as cadeiras descerem quando nos sentávamos ainda representava a grande mais valia de uma sala de cinema. Cheguei às óperas rock conhecendo três ao mesmo tempo: «Tommy», «Jesus Christ Superstar» e «Evita». Tinha 9 anos quando fiz uma viagem de carro pela Europa, que durou um mês, e esta foi parte substancial da banda sonora. Consumi todos os musicais exibidos na televisão e elegi como preferidos o «Annie», o «High Society» e o «My Fair Lady». Vi o «Chess» em Londres (1987) e o «Cats» em Nova Iorque (1996). O «On connaît la chanson» e o «Molin Rouge» trouxeram-me a novidade dos musicais sem música original. O «Chicago» retomou a tradição. Mas antes destes últimos três vi o musical que me explicou porque é que eu gosto tanto de musicais e que, ao mesmo tempo, perverteu a filosofia do género. Como disse a Selma: “In a musical, nothing dreadful ever happens”. À beira do cadafalso a Selma continua a brincar com as legítimas expectativas de quem está a ver um musical, e canta (com a melodia do “New World” que passa no final do filme): “This isn’t the last song / There’s no violins / The choir is quiet / And no one takes a spin”. Os finais tristes suscitam sempre a mesma reacção: isto não vai acabar assim; especialmente quando acreditamos nos musicais.
Os acontecimentos serendipíticos ocorrem com todos nós, mas frequentemente não reconhecemos a sua natureza serendipítica; consideramos tais ocorrências banais, e consequentemente não tiramos total partido delas. (M. Scott Peck, «O Caminho Menos Percorrido»)
Neste blog há “cositas” sobre Manolito, Felipe y Etcetera, em quantidades apreciáveis. Claro que ni Manolito, ni Felipe, ni Etcetera, saberiam decifrar essas “cositas”.
O meu filho teve durante muito tempo uma paixão especial por maçãs. Sempre que lhe perguntava o que é que ele queria para sobremesa, a resposta era inevitavelmente a mesma. No entanto, de um dia para o outro e sem qualquer razão aparente, resolveu rejeitar liminarmente aquele fruto. Comecei por não me importar com o facto porque é sabido que os gostos alimentares das crianças vão variando ao longo do tempo mas passaram-se meses e não havia maneira do meu filho fazer as pazes com as maçãs. Decidi agir e pus a minha cabecinha de mãe a funcionar para ver se reabilitava aos olhos da minha cria a fruta outrora preferida. E acabei por encontrar uma solução: em vez de partir a maçã aos quartos, cortei-a em forma de palitos e disse-lhe que eram batatas fritas. Ele achou graça à semelhança e eu consegui resgatar (até quando?) um alimento que à primeira vista parecia ter sido desprezado para sempre.
Mas a maior importância de uma coisa não se mede só pela menor resistência à privação, ou não haveria nada mais importante, para mim, do que beber água. Há que introduzir o factor “taken for granted”. É provável vir a ser privada de beber água? Não, não é. E o que é certo é que não tenho tido tempo para pensar. Essa é que é essa.
(*«The Big Chill» e o título do post é do Jovanotti, «Penso Positivo»)As listas de espera nas praias portuguesas aumentam e o governo não faz nada. Os boletins a anunciar a melhoria do tempo “lá para quinta-feira” fazem lembrar aquela história da retoma económica. Aguardo uma decisão firme, com pulso, doa a quem doer. Sim: se a situação não melhorar até ao fim-de-semana, não haverá alternativa. Decrete-se a requisição civil do sol e a colaboração coerciva das temperaturas elevadas. Com efeitos a partir de 15 de Agosto, sff.
I remember reading somewhere that men learn to love what they're attracted to, whereas women become more and more attracted to the person they love. (Graham, «Sex, Lies and Videotape»)
“Os homens perdem-se pelos olhos e as mulheres pelos ouvidos”. Não sei quem o disse mas, lá está, ficou-me no ouvido.
Tenho fraca memória visual de traços fisionómicos. Não reconheço pessoas que conheço e, pior, reconheço pessoas que não conheço. Após um período de testes, verifiquei que o erro de processamento é recorrente no caso de ficheiros masculinos e resultará da inoperacionalidade da minha função “save” quanto a estes ficheiros, em qualquer formato “image”. Assim, um ficheiro masculino só é arquivado quando as suas “properties” permitem um “save as word document”. Estou a pensar arranjar lentes de contacto para ver se deixo de cair em conversas.
Tenho o armário da minha vida completamente desarrumado desde há muitos meses. A origem deste desalinho tem várias causas e uma delas consiste certamente no facto de eu nem sequer saber por onde começar a limpeza. Sexta-feira passada resolvi colocar o avental e tentar dar um jeito a uma das gavetas. A experiência não correu nada bem mas teve o condão de abrir um móvel que, a bem dizer, já começava a cheirar a mofo.
Nunca mais cozinhei e não tenho ido fazer compras ao supermercado. Matei três sardinheiras à sede e não me tenho esforçado por salvar a moribunda (e agora é que chove). As sete sardinheiras sobreviventes, a buganvília e o hibiscus já devem ter encetado contactos para arranjar novo(a) dono(a). No fim-de-semana fui ao IKEA e à Habitat ver se reencontrava o meu interesse pelas lides domésticas. Não estava em nenhuma das duas lojas, mas na Habitat comprei uns módulos jeitosos para arrumação de dvd’s. De volta a casa, consegui obrigar-me a despender 35 minutos com essa tarefa. No ginásio onde comparecia todos os dias úteis pelas oito da manhã, não me vêem há três meses (até me ligaram preocupados com a minha ausência). Entretanto, disseram-me que este desmazelo, vindo de quem vem, é um bom sinal e eu, desesperada, acredito. Mas ainda suspiro pela vida fácil da rotina e da disciplina.
Há umas semanas atrás fui confrontada com uma carta da escola do meu filho a solicitar uma autorização do encarregado de educação para um passeio cujo destino era uma quinta pedagógica situada em Loures. Confesso que não me senti nada confortável com a ideia. Ele só tem dois anos. Fiquei a matutar uns dias no assunto e após um sério debate entre o meu lado mãe protectora, preocupada e insegura e o meu lado mãe porreira, descontraída e confiante, lá assinei o papel. Chegou o grande dia. O miúdo estava encantado porque ia andar de autocarro e ver animais. À hora de almoço tive a tentação quase irresistível de telefonar para saber se o passeio tinha corrido bem. Aguentei-me. Ao fim da tarde, ao entrar no infantário, uma das auxiliares comunica-me num tom banal que o meu filho tinha uma pequena ferida no dedo causada por uma dentada de tartaruga. Só podia ser uma piada mas não era. Fiquei desconcertada. O que fazer da próxima vez?
Ele: Eu sou assim, quero isto, aquilo e aqueloutro, e fico irritado quando não tenho o que quero.
Ela: Eu não vou dizer-te como sou, até porque não é possível definirmo-nos. Os processos de evolução e de auto-conhecimento são contínuos e não permitem afirmações taxativas sobre aquilo que somos ou a forma como encaramos a vida e o mundo. Se estiveres à altura saberás aquilo que quero e quando o quero, sem eu ter que to dizer. Também fico irritada quando não tenho o que quero, mas essa irritação nunca será explicável através de uma simples fórmula de causa-efeito. Ah, e aprende a suspeitar de reacções amenas a factos potencialmente conflituosos.
Ando há uns quantos dias a querer escrever um post sobre as diferenças entre homens e mulheres. Uma coisa com quatro ou cinco linhas, simplista, num tom peremptório, fazendo uso de estereótipos. Só agora é que percebi que, para este efeito, ando há uns quantos dias a tentar pensar como um homem. Por mais que me esforce, acho que não vai acontecer.
Segundo Domingo de Agosto, chove em Lisboa e demora-se 25 minutos a chegar das Amoreiras ao Marquês de Pombal. Este governo está por um fio.
O.k. O livro pode ferir susceptibilidades e o autor não é nenhum Prémio Nobel mas o facto das suas quinhentas e tal páginas terem sido lidas em pouco mais de dois dias, com todas aquelas interrupções que umas férias com filho e família pressupõem, explicam perfeitamente o quanto gostei deste romance. Agora, por causa do meu pessimismo quanto à disponibilidade para a leitura nestes dias, já só me resta uma opção: a auto-biografia da Hillary Clinton. Pois.
Sinto-me bem com o corpo mergulhado na água. Será porque neste elemento tudo se dilui? Até a tristeza? Não sei. Mas estou certa quanto à sensação de solidão intencional.
«The act of cheating is defined by the act of getting caught. One does not exist without the other.*» Mais: ser “apanhado” pode, por si só, ser suficiente para que certos actos inócuos sejam qualificados como “enganar”. Por exemplo (e para despistar), o aluno que quer saber que horas são e que, por estar a decorrer um exame, sussurra a pergunta ao colega do lado, estaria obviamente a tentar copiar, caso aquele inocente murmúrio fosse apanhado pelo professor. Não é que a ideia de copiar nunca lhe tenha passado pela cabeça, mas naquele momento ele só queria saber quanto tempo lhe restava para concluir o exame. Depois logo se via se ainda valia a pena. (*Samantha Jones, «Sex and the City»)
«O que foi não é nada»? Noutro dia fui almoçar com um amigo de liceu com o qual mantenho um contacto esporádico. Apesar de nos vermos pouco, é um amigo mais intimo do que outros com que falo todas as semanas. Conhecemo-nos há 17 anos mas as nossas conversas são sempre sobre o presente. E, falando em presente, neste último almoço ele ofereceu-me um cd: o «best of» da Cyndi Lauper. O meu passado ganha consistência – quase existência – por estar guardado na memória dele.
O meu irmão de 21 anos vai ter uma filha. O meu irmão tem 21 anos e, talvez por isso, é entusiasta de desportos radicais e de actividades perigosas relacionadas com carros e motas de alta cilindrada. Mas o meu irmão, apesar dos seus 21 anos, é conciliador, calmo, atencioso, doce, e matava-me se soubesse que eu disse isto. Apesar dos seus 21 anos, o meu irmão gosta muito de crianças; sabe estar, brincar e cuidar delas como poucos homens da sua idade. É vê-lo com as nossas sobrinhas e com os nossos irmãos mais pequeninos. Claro que não é a mesma coisa que ser pai. Essa tarefa nunca é fácil e poderá até ser mais difícil aos 21 anos. Mesmo que se diga que não estava na altura, ele está à altura. Isso é que interessa.