«Galopa Murrieta», Mercedes Sosa
A música do Zorro.
The laws of chance, strange as it seems,
Take us exactly where we most likely need to be
[David Byrne]
Gosto bastante de racionalizações sobre a religião pelo exercício absurdo e inconsequente em que consistem. Assim como gosto de falar sobre as possibilidades da amizade entre homens e mulheres e adoraria dançar sobre arquitectura mas ainda não consegui pô-lo em prática.
Não sou católica mas li o velho e o novo testamentos. Tinha uns 16 ou 17 anos e a minha mãe, que não é católica, andava a implicar comigo porque eu falava como se soubesse imenso do assunto só por conhecer de cor o musical «Jesus Christ Superstar». Não percebi nada da Bíblia, foi como ler um livro em alemão: conhecia a maioria das palavras mas não descortinava o sentido das frases nem conseguia acompanhar o desenrolar da acção.
Os recentes comentários de Saramago sobre o Deus da Bíblia, que "é vingativo e má pessoa", fizeram-me lembrar esta interpretação que li há cinco anos:
A nossa primeira (e, tristemente, muitas vezes a única) noção da natureza de Deus é uma simples extrapolação da natureza dos nossos pais, uma simples mistura dos carácteres das nossas mães e pais ou dos seus substitutos. Quando se tem pais afectuosos e tolerantes, é provável que acreditemos num Deus afectuoso e tolerante. E na nossa perspectiva adulta, o mundo parecerá ser tão acolhedor como a nossa infância. Se os nossos pais são ríspidos e punitivos, provavelmente cresceremos com um conceito de um deus-monstro ríspido e punitivo.
[«O Caminho Menos Percorrido», M. Scott Peck, pág. 209]
No meu caso, apesar do ilustrativo episódio da Parker de tinta azul (1), "tanto o meu deus como eu fomos, ao longo do tempo, mudando de voz, de tom e de posição relativa."(2).
Wall-E (2008, Andrew Stanton)
Desenho do Daniel
A apreciação de um filme depende também dos factores que conjunturalmente condicionam o indivíduo que aprecia. O Wall-E, visto a 15 de Agosto de 2008, apanhou-me com os sentidos amplificados.
O filme contém dois filmes. Gostei ainda mais do primeiro. Eu teria ficado muitas horas só a ver o Wall-E a apanhar o lixo, a inclinar a cabeça, a aproximar os objectos da vista(*), a emitir sons e quaisquer outras variações que, nesta base, ocorressem aos génios da Pixar. Mas, segundo as opiniões que ouvi, tudo indica que, sem a segunda parte, o filme teria menos aceitação. Há mesmo quem considere que o filme começa realmente quando aparecem os humanos, no tal "segundo filme". Este segundo filme não deixa de ser dos mais imaginativos que se têm feito e com muito humor. Só que, à caracterização já de si algo deprimente da humanidade no futuro, adiciona uma certa dose de moralismo inconveniente. Poderei conceder, apenas de mim para comigo, que este moralismo seja inconveniente como a verdade de Al Gore: mais por ser incómodo do que por ser despropositado.
Comprei o dvd para oferecer no Natal do ano passado ao meu irmão do meio, de 26 anos. Mas o presente não resistiu uma semana debaixo da árvore. Apropriei-me do filme e voltei a vê-lo por altura das festas, uma conduta que muito me envergonhou e a que nunca antes tinha recorrido. Calculo que o meu irmão tenha ficado mais satisfeito com a camisa que recebeu.
Aqui.
Estes períodos em que parece que não acontece nada são muito traiçoeiros para uma pessoa que aprecia o registo dos factos, relevantes ou irrelevantes. Nota-se, aliás, pela característica publicação de posts neste blogue nos últimos tempos: escassa e fora de qualquer contexto de actualidade. Não fosse manter-se a tendência para fotografar tudo e, aos 80 anos, teria alguma dificuldade em reconstituir a época 2008/2009.
Além deste problema, que é grave, estou convencida que a felicidade engorda, como indicia o depoimento de Andie MacDowell no «Sexo, Mentiras e Vídeo»: "Being happy isn't all that great. My figure is always at its best when I'm depressed. The last time I was really happy I put on twenty-five pounds.".
Eu que sou estóica, cá me aguento. Mas se fosse a vocês não me metia nisto.
Memento (2000, Christopher Nolan)
Este é o tal outro filme que ainda não é o último. Mais uma vez, a memória. É bom. Já devem ter visto, senão vejam.
2046 (2004, Kar Wai Wong)
Já estou farta disto dos filmes. Agora só me volto a entusiasmar para falar do último. Aqui o 2046 foi um filme de que eu percebi imenso e gostei imenso na altura em que o vi. Só isso explica, ainda que não justifique, que tenha escrito algo tão incompreensível quanto isto. Tudo indica que aborda o tema da memória que é a minha área de especialização. Tenho o dvd portanto é uma questão de fazer as contas.
Caro Diario & os outros [1993, 1998 (Aprile), 2006 (Il Caimano), Nanni Moretti]
Itália é o país da minha segunda nacionalidade. Creio que o terei recebido nessa qualidade por herança, embora não tenha ascendência italiana. As minhas duas primeiras grandes viagens ao estrangeiro passaram por ali e, por isso, na adolescência era o país estrangeiro que eu melhor conhecia, de Norte a Sul, as ilhas e o continente.
Guardo vários episódios destas viagens e vou aproveitar para contar mais um. Um episódio curto mas que tem a particularidade de nunca antes ter sido revelado. Eu tinha feito 13 anos há uma semana e estavamos na Sicília, não me lembro em que cidade, sentados numa esplanada mas de olhos postos no carro para prevenir eventuais assaltos, sobretudo à bagagem arrumada no tejadilho. A minha mãe incumbiu-me de ir comprar o jornal e remeteu-me numa certa direcção onde considerou que o encontraria. No regresso, já com o jornal na mão, um carro abranda e encosta ao passeio ao meu lado. O condutor aborda-me em italiano e a mim pareceu-me que estava a pedir indicações para ir para a praia. Aproximo-me da janela do carro para explicar, em italiano, que não sou dali e que não falo italiano. O condutor peguntou-me, então, se falava inglês. Respondi que sim, talvez até inchada com os meus conhecimentos de línguas. A reacção não se fez esperar: "Do you want to go to the beach?". Corei até à raiz dos cabelos, virei costas e fugi dali. Decidi não contar nada à minha mãe porque achei que seria repreendida mas nunca esqueci o caso que me deixou mais desconfiada de desconhecidos.
Estes filmes do Moretti, que não têm nada a ver com a minha pequena história excepto o facto de se passarem em Itália, surpreenderam-me pela mistura do documentário com a ficção numa fórmula que eu pensava que os cânones cinematográficos não permitiriam. E agradam-me pelos cenários, pelo humor, pela música e pela língua.
Breaking the Waves (1996, Lars von Trier)
Este é o filme a que ainda recorro para uma resposta rápida à pergunta tão difícil de "qual é o teu filme preferido?". Simultaneamente também me poderão ouvir dizer que "é um filme terrível", um adjectivo que, aliás, costumo usar como sinónimo de "magnífico". Depois de o ver fiquei com todos os sintomas de uma pessoa a quem tinha acontecido uma tragédia na vida, sintomas que perduraram por uns 15 dias. O aspecto positivo é que, na realidade, não tinha acontecido uma tragédia na minha vida, e uma boa dose de racionalização em cima de um lado emocional estranhamente atordoado, permitia evidenciar isso mesmo.
Será que estes efeitos constituem um atributo valorizador de um filme? Já não estou muito convencida disso e sei que hoje tenho menos coragem na escolha dos filmes que vou ver ao cinema. Lars von Trier tem um novo filme que, tendo em conta o resumo da história, pus a hipótese de nem sequer conseguir ir ver.
Diálogos escolhidos: aqui. Aproveito para relembrar a minha sinopse e destacar o vídeo dos separadores. Não sei se é atencioso ou sádico permitir a recuperação dos espectadores entre cada estalada do filme.