O Vale da Paixão
“Inquietava-os que a sobrinha não precisasse de luz para subir ao quarto, que subisse as escadas e se deitasse sem acender um fósforo. A própria Maria Ema se inquietava. João Dias e Inácio Dias, que ainda não tinham saído para a América, também regressavam à mesa para comentarem tê-la encontrado no corredor, às escuras, esgueirando-se entre as pernas das floreiras, sem medo, como se fosse uma pessoa velha, e ela ainda nem era pessoa. Também Maria Ema receava que a sobrinha de Walter não tivesse medo, e por isso, acendia-lhe a luz. Obrigava-a a ficar de luz acesa, a ver extinguir-se o petróleo junto da sua cabeça, para poder descer e dizer ao marido, ao sogro, aos cunhados e às cunhadas que tudo estava normal. Ela mesma acendia a luz para que a criança não tivesse medo do medo que não tinha, e Custódio Dias perguntava, preparando o fogo – “ A nossa filha não ficou com medo?” Maria Ema curvava-se sobre a mesa, mergulhava a cara nos objectos que cosia. Sempre cosia – “Cada um tem o medo que pode ter. Não é?”
Lídia Jorge
2 Comments:
Este é um dos livros da minha vida e vão passando os anos e as leituras e continua a ser isso mesmo: uma descoberta constante de pormenores.
Obrigada por me teres feito recordar tão boas e intensas palavras.
De nada.
Fui espreitar o teu blogue. É muito cuidado. Gostei. E da música que estava a tocar também.
Enviar um comentário
<< Home