Serendipity

The laws of chance, strange as it seems,
Take us exactly where we most likely need to be
[David Byrne]

terça-feira, 14 de setembro de 2004

Primária (2)

Ao ler, saltava palavras e “lia” outras que não estavam no texto, o que se tornava indisfarçável quando a leitura era feita em voz alta. Os ditados eram uma lástima. A transformação das letras e das palavras em sons, e dos sons em letras e palavras, era um enigma. Escrevia uma palavra com todas as sílabas que a compunham, mas fora de ordem. As palavras pequenas (“que”, “em”, “era”, “como”, etc.) ou não chegavam a sair da cabeça para o papel, ou eram escritas a dobrar. As dificuldades também transpareciam na expressão oral. Usava vocábulos que não existiam mas eram foneticamente semelhantes àqueles que queria usar; trocava o significado de palavras parecidas; comia sílabas de palavras mais longas só dizendo os sons essenciais. A família divertia-se e não posso dizer que isto me preocupasse.

Lia «Os Cinco», «Os Sete», «O Colégio das Quatro Torres» e as outras colecções da Enid Blyton, a Alice Vieira e o mais que a minha irmã fosse recomendando (“a minha irmã sabe...”). Mas gostava muito mais de comics: a «Mafalda» e o resto do Quino, o «Hi and Lois», o «Olho Vermelho», e também de toda a banda desenhada. Neste género, os meus preferidos eram o «Petzi», e os «Estrumpfes» («Patinhas» é que não podia ser porque “põem os miúdos a falar brasileiro”).

[O meu pai coleccionava a revista «Tintin». Eu acabava por ler cada número de uma ponta à outra, mas começava sempre pelas histórias que não eram “em continuação” e que normalmente tinham só uma página, como o «Achille». Depois logo ia ao «Spirou», «Lucky Luke», «Astérix», etc. Gostava mesmo do Fantasio e, mais tarde, do Gaston Lagaffe, que “trabalhava” na redacção do jornal onde o Spirou era jornalista. E o Marsupilami... entusiasmei-me.]

Desenvolvem-se técnicas que conseguem minorar os efeitos nefastos. Lê-se duas ou três vezes um texto para conhecer o sentido real das afirmações. Não é para compreender o conteúdo; é porque, na primeira leitura, saltou-se um “não” ou um “nem” e leu-se o contrário do que foi escrito. Revê-se tudo o que se escreve, também duas ou três vezes, apagando-se as palavras repetidas e acrescentando-se as que se pretendeu escrever mas não estão lá. Ler em voz alta continua a ser problemático. Ironicamente (e obviamente), ganhei um faro apuradíssimo para detectar gralhas e uma exagerada aversão a todo o tipo de erros ou meros lapsos de escrita. Especialmente os meus, aqueles que, mesmo à terceira revisão, escapam.

3 Comments:

Blogger inês said...

e nenhuma professora conseguiu ter a clarividência de exaltar essa genialidade? sim, amiga: com essa rapidez de pensamento e de escrita, com essa criatividade... só mesmo sendo genial. que - acredito - serás.

2:51 da tarde  
Blogger inês said...

ah! e por mim... spirou. era (ainda serei?) fã!

2:55 da tarde  
Blogger Sam said...

Estamos na fase do "não era por burrice..." e, pelo que soube, as professoras não achavam que fosse. Que eu era (sou) um génio é coisa que ficará sempre entre mim e eu (e o Calvin, talvez).

3:31 da tarde  

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