Primária (2)
Ao ler, saltava palavras e “lia” outras que não estavam no texto, o que se tornava indisfarçável quando a leitura era feita em voz alta. Os ditados eram uma lástima. A transformação das letras e das palavras em sons, e dos sons em letras e palavras, era um enigma. Escrevia uma palavra com todas as sílabas que a compunham, mas fora de ordem. As palavras pequenas (“que”, “em”, “era”, “como”, etc.) ou não chegavam a sair da cabeça para o papel, ou eram escritas a dobrar. As dificuldades também transpareciam na expressão oral. Usava vocábulos que não existiam mas eram foneticamente semelhantes àqueles que queria usar; trocava o significado de palavras parecidas; comia sílabas de palavras mais longas só dizendo os sons essenciais. A família divertia-se e não posso dizer que isto me preocupasse.
Lia «Os Cinco», «Os Sete», «O Colégio das Quatro Torres» e as outras colecções da Enid Blyton, a Alice Vieira e o mais que a minha irmã fosse recomendando (“a minha irmã sabe...”). Mas gostava muito mais de comics: a «Mafalda» e o resto do Quino, o «Hi and Lois», o «Olho Vermelho», e também de toda a banda desenhada. Neste género, os meus preferidos eram o «Petzi», e os «Estrumpfes» («Patinhas» é que não podia ser porque “põem os miúdos a falar brasileiro”).
[O meu pai coleccionava a revista «Tintin». Eu acabava por ler cada número de uma ponta à outra, mas começava sempre pelas histórias que não eram “em continuação” e que normalmente tinham só uma página, como o «Achille». Depois logo ia ao «Spirou», «Lucky Luke», «Astérix», etc. Gostava mesmo do Fantasio e, mais tarde, do Gaston Lagaffe, que “trabalhava” na redacção do jornal onde o Spirou era jornalista. E o Marsupilami... entusiasmei-me.]
Desenvolvem-se técnicas que conseguem minorar os efeitos nefastos. Lê-se duas ou três vezes um texto para conhecer o sentido real das afirmações. Não é para compreender o conteúdo; é porque, na primeira leitura, saltou-se um “não” ou um “nem” e leu-se o contrário do que foi escrito. Revê-se tudo o que se escreve, também duas ou três vezes, apagando-se as palavras repetidas e acrescentando-se as que se pretendeu escrever mas não estão lá. Ler em voz alta continua a ser problemático. Ironicamente (e obviamente), ganhei um faro apuradíssimo para detectar gralhas e uma exagerada aversão a todo o tipo de erros ou meros lapsos de escrita. Especialmente os meus, aqueles que, mesmo à terceira revisão, escapam.
3 Comments:
e nenhuma professora conseguiu ter a clarividência de exaltar essa genialidade? sim, amiga: com essa rapidez de pensamento e de escrita, com essa criatividade... só mesmo sendo genial. que - acredito - serás.
ah! e por mim... spirou. era (ainda serei?) fã!
Estamos na fase do "não era por burrice..." e, pelo que soube, as professoras não achavam que fosse. Que eu era (sou) um génio é coisa que ficará sempre entre mim e eu (e o Calvin, talvez).
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