Serendipity

The laws of chance, strange as it seems,
Take us exactly where we most likely need to be
[David Byrne]

domingo, 2 de setembro de 2007

EPC

O arquivo disponibilizado on line pelo Público não contém todas a crónicas. Passo a reproduzir aquela que me ficou marcada na memória.

Quisera Eu
Por EDUARDO PRADO COELHO
Segunda-feira, 12 de Janeiro de 2004

Entro na Universidade Nova, nas instalações da Avenida de Berna, e desde o portão que uma composição de rectângulos escritos invadiu obsessivamente as paredes. Podemos ler: "Quisera eu ser o Pedro/Desta Inês tão galante/Do meu castro seres rainha/Ser teu cavaleiro andante". O que nos começa por impressionar é o modo insistente como esta mensagem ocupa todo o espaço. Os cartazes contra as propinas desapareceram, bem assim como as respectivas assembleias-gerais que pretendem mobilizar as massas contra elas. Desapareceram os anúncios das conferências, as mensagens de alarme pelos cães que podem ser abatidos em canis dos arredores de Lisboa, os quartos para alugar, as excursões de fim de curso, os colóquios sobre Adorno e a música, os protestos contra a penalização do aborto, desapareceu tudo.

Só existe uma coisa: alguém gostaria de ser o Pedro de uma Inês. Procuro informar-me: há explicações de todo o tipo. Tratar-se-ia de publicidade a um espectáculo, ou de uma tentativa de arranjar frequentadores para um laboratório de dicção poética. Ou então - dizem outros - de uma mensagem de alguém que foi pedir autorização à Associação de Estudantes para encher a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas com este apelo (que tem uma discretíssima assinatura em baixo, do lado direito: "F."). Deve ser naturalmente um aluno de Letras, um fervoroso leitor das antologias de Vasco Graça Moura, um amante dos clássicos. Só alguém com este perfil escreveria fórmulas como "quisera eu...". Só alguém que viu os espectáculos de Ricardo Pais imaginaria ser um amante de Inês. Só alguém que lê a poesia do século XVI seria capaz de ir buscar a palavra "galante" para dirigir um galanteio, numa época em que a acção directa parece ter substituído o culto das mediações. Só alguém que ama as palavras poderia dizer que esta Inês é "de Castro", porque esse alguém pretendia que ela fosse rainha do seu castro. Só alguém que é filho de um leitor do "Cavaleiro Andante " (essa revista dos anos 50, com banda desenhada em folhetim, que hoje se vende como preciosidade nos alfarrabistas, como fiquei a saber por uma reportagem do "magazine cultural" da 2:, coordenado, no que diz respeito a livros, por Pedro Mexia) poderia desejar ser um novo "cavaleiro andante".

Aceitemos como boa a última hipótese, uma vez que todas as outras simulam que ela é que é a boa. O que nos seduz é, não apenas a elegância da mensagem, mas a contida desmesura do gesto: tornar pública uma paixão, recobrindo-a do anonimato mais austero e cultural, deixar que alguém entre na Faculdade e se reveja de surpresa em todas as paredes, e apostar que deste modo o coração cede e o amor vence para além da morte. Não ficou inscrito na casca de uma árvore (não fui verificar tronco por tronco), aceitou a sua efemeridade frágil, mas tornar-se-á inesquecível. Esperemos que Inês diga que sim, e que mais tarde, num momento de impaciência ou de cansaço, quando estiver prestes a ser agressiva, se recorde que "numa manhã de Inverno o meu nome foi escrito, lido, transmitido e envolvido de paixão, num encadeamento sem fim, num segredo mais transparente do que a própria luz". Espero que tu leias assim, o que lá está escrito, em silêncio, sobre o que lá está escrito.